Páginas

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Aventuras de um pai nerd 2: porque álcool 70% desinfeta melhor que álcool 90%?


Para cuidar do umbiguinho da minha filha, logo após chegar do parto, a recomendação foi usar o álcool 70% para higienizar todo dia, até cair o coto umbilical que ficou pendurado. É uma dúvida comum o fato de se usar o álcool 70% e não o álcool 90% (na verdade, 92,8%, mas o pessoal acostumou a chamar de álcool 90%) para higienizar ambientes. Um amigo meu que é dono de uma doceria, me perguntou uma vez porque a Anvisa exige álcool 70% se ele poderia usar álcool 90%, mais concentrado e portanto melhor para higienizar. A preocupação é tanta que os fiscais não aceitam que você faça a diluição e exigem a compra de álcool 70% para higienização. Esta dúvida surge porque normalmente as pessoas entendem que quanto maior a concentração de um ativo, no caso o álcool, maior é o efeito que se espera dele. Esta confusão acontece porque é verdade para muitas situações, mas para o álcool usado na higienização não é assim e vamos tentar entender porque.

Primeiramente, vamos falar um pouquinho do álcool. Ele provavelmente foi percebido primeiramente pelos agricultores que, ao guardar grãos como a cevada em ambientes com umidade suficiente para iniciar a germinação destes grãos, acabaram produzindo “grãos malteados”. Grãos malteados são aqueles que tiveram somente a etapa inicial de seu processo de germinação, em que se quebram parte dos amidos (que são polissacarídeos) em açúcares mais simples, que tornam possível a fermentação. Com a presença de fungos selvagens, como o saccharomyces cerevisiae, pode-se fermentar estes grãos e produzir álcool. Este processo de fermentação na presença do saccharomyces cerevisiae também pode ocorrer com suco de frutas. A fermentação de grãos como a cevada, após malteados, pode originar a cerveja e a fermentação de suco de frutas, como a uva pode originar o vinho. O vinho, que tem uma concentração de álcool um pouco maior, de 10 a 12%, já era usado como desinfetante em feridas de batalha, que eram cobertas com um pano embebido, e mantido umedecido, com vinho. Algum tempo depois do advento da destilação, que é uma técnica usada para separar misturas, eseu uso para separar a água do álcool, mesmo que parcialmente, o álcool (na época chamado também de espírito do vinho) ganhou em eficácia e passou a ser mais utilizado como desinfetante (e como bebida recreativa...). Até aqui vale a premissa de quanto mais concentrado o álcool, mais efeito tem, seja no efeito antisséptico, seja para engatarmos uma bebedeira.

A situação da concentração muda quando é para higienizar um ambiente, ou seja, matar microorganismos que não estejam na forma de esporo. O álcool age nos microorganismos por desnaturar as proteínas na presença de água e a sua eficácia acontece entre 60 e 90% de concentração. ATENÇÃO: em concentrações próximas a 100% de álcool, ou seja, com pouquíssima água, o álcool NÃO atua como desinfetante (Dê uma olhada na Tabela 2, da página 7 deste documento da Anvisa). Se a faixa de 60 a 90% funciona bem, porque se escolheu o álcool 70% como o padrão para higienização? O meu palpite é que em concentrações menores ele demora mais para evaporar, atuando por um tempo maior no lugar que se quer desinfetar, aumentando a eficiência. Portanto, siga as intruções e use álcool 70% para higienizar o umbiguinho de sua cria, pois o de 90% é pior para essa função.

P.S.: O primeiro post da série sobre aventuras de um pai nerd está aqui, e é sobre mamadeiras.

Datação por carbono-14 e as safadezas de um brasileiro avantajado (ou mentiroso...)


Hoje, no jornal Folha de S. Paulo, saiu uma matéria na página dedicada à ciência, sobre o achado de um antropólogo da USP, o Prof. Walter Alves Neves, que lidera o grupo que encontrou e datou uma gravura de caverna representando um homem animado, no sentido sexual, em Minas Gerais. Dê uma olhada na imagem clicando aqui e abrindo para a matéria da folha. Mais adiante será importante ter visto a imagem!

Onde entra o carbono 14 nessa história? Vamos ao fundamento: todo átomo tem três componentes, o próton e o neutron que ficam no núcleo (exceção é o hidrogênio que só tem um próton e nenhum neutron, os demais tem protons e neutrons) e o elétron que fica na eletrosfera, ao redor do núcleo. O núcleo é o principal responsável pela massa do átomo e a eletrosfera é a principal responsável pelo tamanho do átomo. A quantidade de prótons que tem no núcleo é o que determina a identidade do átomo (próton e protagonista não tem o mesmo radical por acaso...). Se um átomo tem 6 prótons, será um carbono, se tiver 7 prótons será um nitrogênio, e por aí vai a tabela periódica inteira. Porém, a quantidade de neutrons pode variar para o mesmo elemento. Por exemplo, há carbonos que tem 6 prótons e 6 neutrons e são conhecidos como Carbono 12, já os carbonos que tem 6 prótons e 8 neutrons são conhecidos como Carbono 14 (perceberam a lógica do número que acompanha o nome do átomo? É a soma dos prótons e neutrons e esse número se chama número de massa). Estas espécies do mesmo elemento que tem massa diferente a gente chama de isótopos, o Carbono 12, mais comum, é isótopo do Carbono 14, menos comum. Na tabela periódica vai o isótopo mais abundante e mais estável encontrado na natureza, os demais são menos abundantes e, mais importante para o que estamos conversando, menos estáveis. Como na natureza há uma proporção mais ou menos fixa entre os diferentes isótopos de um mesmo elemento, o pessoal que inventou esta técnica de datação teve a seguinte sacada: os seres vivos tem a mesma proporção de Carbono 12 e Carbono 14 porque estão sempre respirando e se alimentando e, portanto sempre renovando as duas espécies de carbono. Porém assim que um ser vivo morre essa troca para e a razão entre os dois tipos de carbonos vai mudar uma vez que um é mais estável que o outro. Como sabemos a velocidade com a qual o carbono 14 se decompõe, calculando a concentração em relação à concentração de carbono 12, conseguimos saber aproximadamente há quanto tempo aquele artefato foi feito. Materiais típicos que podem dar dicas de idade para os cientistas são, por exemplo, flechas que já foram pedaços de galho arrancados de árvores, ou partes internas de urnas com material orgânico, como resíduos de alimentos que foram petrificados, ou ainda pinturas com pigmentos que eram misturados à gordura animal para poder espalhá-los pela parede de pedra. No caso da descoberta do professor Walter Neves, a dica da idade da gravura veio de uma fogueira que estava logo abaixo da gravura, que revelou a idade aproximada de 10.500 anos de idade. Artefatos que não tenham carbono, como panelas, espadas ou pontas metálicas de flechas não podem ser datadas por carbono 14 por não terem carbono...

Agora que aprendemos sobre a datação, é importante aproveitar a saliência do artista (o homem das cavernas que fez a gravura) para fazer algumas especulações. Primeiramente, o pênis representado é praticamente do mesmo tamanho do pé na mesma gravura, um bom parâmetro de tamanho. Questão importantíssima atrelada ao tamanho do pênis na gravura é: o artista era adepto do realismo ou do impressionismo? O primeiro estilo retrata com fidelidade o retratado, já o segundo estilo retrata a impressão que o artista teve do retratado. No caso do artista ser adepto do realismo, significa que o homem não evoluiu, mas aparentemente regrediu, no quesito tamanho. Porém, caso o artista seja adepto do impressionismo, e a obra seja um auto-retrato, significa que o homem não evoluiu nada, nos últimos 10.500 anos, no quesito auto-avaliação...

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Vampiros são bem burros (Ou a química do protetor solar)


Fui me preparar para escrever este post sobre protetores solares, e imaginei que a limitação dos vampiros de exposição ao Sol poderia ser um boa desculpa para falar de protetores solares. De início fui procurar algo de interessante sobre vampiros e achei alguns documentos interessantes na Internet, desde o site da Agência Federal de Vampiros e Zumbis a um artigo da Annals of Improbable Research (a revista que promove o Prêmio IgNobel), o “The Chemical and Physical Properties of Vampires in the Gaseous State. O primeiro veste a bobagem sobre vampiros com roupagem científica (se podemos chamar de ciência...). O segundo usa a ciência para “viajar” em alguns dos mitos que cercam os vampiros. O segundo foi bem mais legal de ler e certamente é muito mais interessante para alunos de ensino médio e estudantes universitários que queiram usar os conhecimentos aprendidos sobre gases em um contexto divertido.

Feita a recomendação de leitura acima, vamos falar de algumas coisas interessantes sobre a relação que poderia existir entre vampiros e protetores solares. Sabemos que vampiros têm aversão à luz solar e nos filmes a reação à luz do Sol se divide em duas categorias principais: na primeira, mais comum, a dos vampiros burros, que explodem, pegam fogo ou brilham e viram cinzas, e na segunda, a dos vampiros malandros, que usam anéis ou colares místicos que “blindam” contra o Sol (historinha prá boi dormir...). Para entender porque há roteiristas que insistem em colocar os vampiros em filmes para morrer queimados, vamos tentar entender melhor como o homem se protege do Sol.

Todos que já tiveram a experiência de torrar um pouco ao Sol sem proteção, especialmente os branquelos, sabem que isso não dá certo. Claro que isso não é de agora e até os homens da caverna branquelos tinham seus momentos de vermelhidão. Provavelmente, a primeira coisa que inventaram foi a sombra portátil individual, hoje conhecida como chapéu ou boné. Assim eles podiam levar a sombra por onde andassem sem se expor diretamente ao Sol. Claro que a sombra portátil poderia cair, ser roubada ou voar durante a corrida atrás de comidas que se mexiam (até o advento da agricultura, o homem sempre teve que pastar (ops!) atrás de outros animais para comer), e aí os homens ficavam sem a proteção da sombra portátil. Por observação de outros animais como hipopótamos, elefantes ou rinocerontes (ou os equivalentes da época), sempre se soube que a lama serve para refrescar, e após seca, para proteção contra o Sol.

Inspirados por esta esperteza animal, e talvez por uma necessidade reprimida de se enfeitar, o homem inventou as tinturas de guerra e de caça, permitindo proteção sem as limitações impostas pelas sombras portáteis. Estas tinturas são muito parecidas com o que se chama em inglês de Sun block (bloqueador solar), que é uma das modalidades de proteção que temos hoje, que chamamos de proteção física. Funciona como barreira física à luz do Sol, que acaba refletida após incidir sobre a lama de antigamente ou sobre a dispersão de óxido de zinco ou de titânio que se usa hoje em dia. Apesar desta tecnologia estar disponível há muito tempo, os vampiros, que são muito burros, não betumam as partes expostas para sair de dia e chupar uns pescoços por aí. Talvez porque os vampiros sejam muito vaidosos e esse tipo de proteção diminua o valor estético do usuário. Abaixo , por exemplo, podemos ver Brad Pitt em Cannes, usando este tipo de proteção ao Sol...

Brad Pitt, protegido contra a exposição ao Sol, acenando para os fãs

Bom, apesar de deficiente do ponto de vista estético, esta foi a proteção mais usada pelas pessoas que queriam ficar expostas ao Sol, até que um químico austríaco, Franz Greiter, após escalar uma montanha e ganhar um vermelhão na cara, inventar uma nova tecnologia: o protetor solar. Ele sabia que a luz do Sol é uma mistura de vários tipos de luz, com diferentes comprimentos de onda, ou seja, tem infra-vermelho (que esquenta), tem luz visível (que a gente vê...) e tem ultra-violeta (que faz mal!). Aí ele teve a sacada de misturar uma substância que absorvesse a parte da luz do Sol que machuca com um creme ou óleo que permitisse espalhar essa substância sobre a pele: estava criado, em 1938, o primeiro protetor solar com outra modalidade de proteção, a proteção química!

Duas fotografias de um homem usando protetor solar (FPS 50) na metade esquerda do rosto. À esquerda ele está sob luz visível e à direita ele está sob luz ultravioleta. O protetor solar no lado esquerdo do rosto absorve radiação ultravioleta, mostrando a ação do filtro solar

A substância que ele usou, o ácido para-aminobenzóico (PABA), absorve parte do ultra-violeta, mas permite que a luz na região do visível e do infravermelho passem, sem dar a bandeira que a proteção física proporciona. O limite desta técnica é que o PABA só absorve parte da região do ultravioleta, mas, pelo menos, é a parte mais perigosa.

Agora vamos fazer um exercício de raciocínio sobre a relação dos vampiros com a luz do Sol: qualquer vela ou lâmpada emite luz no visível e qualquer pessoa ou fonte de calor emite radiação no infravermelho (por isso que nos filmes de guerra moderna, sempre tem alguma camera de visão noturna que capta o infravermelho das pessoas), e vampiros não dão chilique perto de velas ou pessoas... Ora, o problema então só pode ser o ultravioleta!!!! Alguém pode me explicar porque os vampiros não podem usar protetor solar???? O creminho colorido pode ser feio, mas o protetor solar é transparente!!!!! Podemos pensar que o ácido para-aminobenzóico só bloqueia parte da radiação ultravioleta, mas já existem misturas com outras substâncias que absorvem o resto da região do ultravioleta para fazer protetores solares mais eficientes, que absorvem toda a radiação ultravioleta que escapou de ser absorvida pela camada de ozônio (aliás, se não fosse a camada de ozônio, nem nós que não somos vampiros escaparíamos! É a camada de ozônio que absorve quase que completamente a parte mais perigosa do ultravioleta que o Sol emite).

Ácido para-aminobenzóico

Outra coisa interessante sobre protetores solares é o modo como se classifica o fator de proteção solar de cada um, o tal do FPS que vem nas embalagens. Quando usamos um protetor com FPS 20, quer dizer que podemos ficar expostos ao Sol 20 vezes mais que sem protetor solar antes de ter um eritema (o vermelhão causado pela exposição ao Sol). Se demora 20 minutos para ficar com cor de camarão sem usar protetor solar de FPS 20, demora 400 minutos para ficar com cor de camarão usando protetor solar de FPS 20. Estes valores são obtidos em testes com pessoas ou com uso de equipamentos que medem a radiação que passa pelo protetor solar. Porém, é importante saber que para determinar o FPS do protetor, a norma pede para espalhar 2 mg de protetor por centímetro quadrado de pele. Estudos mostram que o usuário descuidado não espalha um terço disso, gerando uma falsa sensação de proteção. Para evitar esse problema, já há algumas invenções para nos alertar quando estamos muito expostos à luz do Sol. Inventaram até um bikini que muda de cor quando exposto ao Sol por tempo maior que o saudável.

Uma tendência em pesquisas nessa área é estudar novas substâncias para uso em protetores solares que absorvam cada vez maior extensão da região do ultravioleta, oferecendo maior proteção. Não é fácil achar uma substância para atuar em protetores solares: ela deve ser estável  quando exposta ao Sol, deve absorver a luz na região do ultravioleta e liberar a energia absorvida em uma forma inofensiva como infravermelho ou luz visível, não pode ser tóxica e deve ser transparente. Alguns pesquisadores buscam novas substâncias na natureza para servir como protetores solares e aí o Brasil tem vantagem pela grande biodiversidade à disposição e experiência no trabalho com produtos naturais. Vampiros tem se mostrado tão burros, que se algum quiser virar cientista e for trabalhar nesta área, é capaz de querer extrair alguma substância fotoprotetora do alho! Seria como algum lobisomem resolver usar um piercing de prata...

Todas as imagens deste post foram retiradas do Wikimedia Commons.


Leitura feita para a elaboração desse texto


quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

A flatulência e a convivência em aviões (ou a química do peido)


Hoje saiu no caderno de Turismo da Folha de S. Paulo um conjunto de matérias sobre comida de avião. Em uma das matérias, intitulada “Baixa pressão na cabine agrava problemas de saúde”, foi abordado um assunto que é também abordado em vestibulares e tem muitas aplicações no nosso cotidiano: o comportamento de gases. A repórter Marina Della Valle expõe na matéria que o fato de o avião ser pressurizado não significa que a pressão dentro do avião seja igual à que estamos acostumados, pelo menos não a maioria. Há situações em que o avião está muito alto e que a pressão atmosférica é equivalente à de La Paz, Bolívia, onde a pressão atmosférica é quase 2/3 da pressão ao nível do mar. Por causa dessa característica, há mais dificuldade para respirar, pois há menos oxigênio ocupando o espaço do nosso pulmão e fica mais difícil praticar esportes se você não está acostumado, daí a FIFA encrencar com os jogos em La Paz. (As pessoas que moram nesta altitude não tem problemas com o ar rarefeito porque o corpo humano se adapta produzindo mais hemoglobinas, assim a troca de gás que ocorre no pulmão, com o gás carbônico (CO2) saindo e o oxigênio (O2) entrando, ocorre com mais eficiência, possibilitando viver bem com menos oxigênio no ar.)

Hemoglobina liberando CO2 e capturando O2
 
O tempo de um vôo não é suficiente para esta adaptação e algumas pessoas podem sofrer com pressões como esta, além dos problemas que ocorrem com a expansão dos gases. A expansão dos gases ocorre a menores pressões, e isso pode ser visualizado no vídeo abaixo (dos 50 segundos em diante).


 

Nele você consegue ver que quando você coloca uma bexiga em uma situação onde a pressão atmosférica diminui, ela vai aumentar de tamanho, isso porque as moléculas e átomos que compõem o ar ao redor estão em menor quantidade, então vão pressionar menos a bexiga, que também tem moléculas de gás, que acaba expandindo. Imagine que os gases que você tem dentro de si vão se comportar do mesmo jeito que os gases dentro das bexigas no vídeo acima. Os gases no pulmão não nos preocupam porque eles estão diretamente conectados com o exterior pelo nosso nariz, e não vão nos constranger. O problema são os gases que estão contidos dentro de você e que, até então, estavam sob controle: os gases da flatulência. Imagine que eles também vão se expandir, como a bexiga que vimos, e exercer maior pressão para sair. E se você estiver sentado ao lado de uma moça ou um moço atraentes, você pode se constranger e ser obrigado a acusar injustamente o sujeito sentado à frente de vocês. Para evitar esses constrangimentos vamos entender melhor o fenômeno da flatulência.

Texto do original da figura: Illustration of "The demands of the people" during the revolutions of 1848/49. "Vox populi" is sarcastically likened to a fart!

A flatulência acontece naturalmente no nosso corpo a partir da ingestão de polissacarídeos (polímeros feitos de açúcares) que não conseguimos quebrar em açúcares mais simples para possibilitar a sua digestão. Estes polissacarídeos estão contidos em alimentos míticos como o feijão, o repolho e a batata-doce, e em outros aparentemente mais inocentes. A verdade é que não conseguimos fugir de ingerir alimentos com polissacarídeos que não sejam digeridos pelo nosso organismo e provoquem a flatulência (em uma dieta saudável, flatulamos de 10 a 15 vezes por dia!). Inclusive, algumas das fibras solúveis que tanto procuramos nos alimentos para formar o bolo fecal, e acabamos tendo que comprar na farmácia para melhorar a qualidade do tempo que passamos no banheiro, fazem parte dessa categoria de polissacarídeos. Não conseguimos digerir estes polissacarídeos, quebrando-os em pedaços menores, porque não temos a enzima para isto. O problema da flatulência começa um pouco depois do nosso estômago, por onde estes polissacarídeos passaram incólumes. Ao chegar no intestino, esses polissacarídeos que não digerimos encontram a tal da flora intestinal, e alguns microorganismos que são parte dessa flora têm a enzima para quebrar esses polissacarídeos em açúcares mais simples e fazer a sua digestão, transformando-os em energia, CO2 (gás carbônico), água, CH4 (metano) e outras coisinhas. O problema é que a geração desses gases ocorre em um ambiente mais ou menos fechado, que é o nosso intestino, e esses gases fazem pressão prá sair. Se estamos atentos, conseguimos segurar essa pressão a maior parte das vezes, até que consigamos acesso a um lugar onde estes gases podem ser liberados sem prejuízo dos protocolos sociais. Porém, se estamos desatentos e, ainda por cima, em um avião em grande altitude, o risco do vexame é grande! Este é o motivo do porque o estado de ânimo do desconhecido ao seu lado no avião muda sem explicações após aquela sonequinha...

Texto do original da figura: Treason!!! John Bull emits an explosive bout of flatulence at a poster of George III as an outraged William Pitt the Younger ticks him off. Newton's etching was probably a comment on Pitt's threat (realized the following month) to suspend habeas corpus.

Uma última coisa sobre a flatulência é entender porque a flatulência cheira mal. Os gases que citamos acima são todos inodoros e não são responsáveis pelo cheiro desagradável do flato. Poderiamos dizer que a culpa é da má companhia com a qual os gases tiveram que conviver em sua estadia pelo intestino. Assim, precisamos entender porque essa má companhia é mal-cheirosa e a culpa é de uma categoria de substâncias químicas que chamamos de mercaptanas ou tióis. Os tióis são substâncias que contém enxofre na composição química e que apresentam forte odor, mesmo em baixíssimas concentrações. Tióis são muito úteis, por exemplo, para nos alertar da presença dos gases do butijão da cozinha, já que esses gases também são inodoros e por isso são adicionados de um tiol para que saibamos quando há vazamento. A substância responsável pelo cheiro que fica nas nossas mãos após cozinhar com alho também é de um tiol. As proteínas em geral tem substâncias com enxofre que acabam gerando os tióis que fazem a má fama da flatulência.

As informações que vimos nesta postagem podem explicar um pouco de algumas dietas que vemos por aí. A dieta das proteínas, por exemplo, afeta a frequência da flatulência por não permitir a ingestão de carbohidratos (que são polissacarídeos) em quantidade que gere gases que possam exercer pressão suficiente para querer sair do intestino. Porém, a ingestão preferencial e exagerada de proteínas garante que a pessoa que use o banheiro após você não queira ser sua amiga. Já os vegetarianos garantem uma boa frequência de flatos pela abundante ingestão de polissacarídeos, mas ganham pontos na escala social por não terem muito cheiro, desde que sejam capazes de controlar o barulho...



Todas as fotos deste post foram retiradas do Wikimedia Commons.



Leitura feita para a elaboração do texto

Hardee, JR; Montgomery, TM; Jones, WH. Chemistry and flatulence: An introductory enzyme experiment. Journal of Chemical Education, 2000, 77(4):498-500


Sugestão de leitura

Um experimento interessante e simples com o efeito da pressão atmosférica na expansão de gases está no blog “Ciências todo dia!”.